Eu ando imersa no universo da
cozinha. Além do exercício prático cotidiano de cozinhar e fazer experimentos
na cozinha como por exemplo explorar as várias texturas de polentas e angus,
seus possíveis recheios e a sua combinação com queijos e molhos, também pela primeira vez estou tendo a possibilidade de
cozinhar para mais pessoas e isso exige uma grande responsabilidade (sempre
cozinhei para os mais próximos, mas agora o círculo anda aumentado e estou
adorando!). Só que, além disso, ando também estudando, lendo e pesquisando
sobre a comida, suas relações sociais, econômicas e culturais. O quanto somos influenciados
pela comida que comemos e vice-e-versa. Sempre me interessei pela relação que a
comida exerce na comunidade. O simbolismo da preparação de um determinado prato
nos mostra muito das mãos que o preparam. Esse encantamento me acompanha desde
criança quando acompanhava atenta ao dia da “Pamonhada” na minha família. Vendo
o milho se transformar em creme, bolos, doces e bebidas enquanto as dores e
encantos da minha família iam se mostrando em cada etapa da preparação. Os
homens depois de colher levavam o milho e as mulheres esperando começam o
preparo. Cada uma delas, uma função. E sem nenhuma ordem que não a técnica de
preparo – descascar, moer, ralar, cozer – que cada uma delas dominava. Entravam
causos, histórias de vida, cantos, sonhos, vontades e prazeres. Na época, claro,
não tinha clareza de tudo, era uma curiosidade atenta como de um espectador diante
de um espetáculo teatral. Ali eu ganhava a cumplicidade de minha mãe, avós e tias.
No fim do dia, os homens depois de muito jogar truco, já haviam descansado do
almoço e das pequenas doses de aguardente e as mulheres cansadas, mas agora
carregadas de uma força coletiva, e nós,
as crianças fartávamos de comer o milho
em suas mais variadas formas. Enfim,
desde então, de forma intuitiva fui carregando em mim a tentativa de decifrar estes códigos e símbolos em torno da mesa e do fogão.
Durante este percurso, encontrei
muito material (livros, documentos, textos, sites, comunidades, etc.) e são base essencial para que eu possa
entender a história da nossa alimentação e seus processos históricos, suas
relações culturais. A comida da região e suas influências econômicas e culturais.
Os tropeiros, o homem da roça, as mulheres, a alimentação indígena e africana,
enfim, a formação de nossa base alimentar e pude (movida pela curiosidade
sempre!) tentar traduzir e interpretar
isso na cozinha que cotidianamente pratico. E esta semana tive um “start”, uma
indagação que já me acompanhava mas de forma muito, mas muito inconsistente e
que martelava lá no fundo sempre mas foi
durante um café da manhã em meio as
minhas leituras matinais que se formulou com clareza:
O
quanto ficou daquele homem e mulher da roça, do tropeiro, do índio e do negro
na nossa alimentação e em nossos hábitos à mesa hoje? O que as pessoas da minha
geração e mais novas, nascidos nesta região ( Vale do Paraíba Paulista) e influenciados por esta memória gustativa mantêm
cotidianamente nos dias atuais? Se somos
o que comemos quem é o homem valeparaibano hoje? O que restou de suas tradições
em torno da mesa e o que faz elas sobreviverem diante desta padronização
alimentar e porque e elas resistem?
Lancei
estas indagações no face. Fiquei surpresa que muita gente retornou e o papo
ganhou força. No ímpeto, lancei perguntas e a primeira delas foi: Quem come com
farinha? Quem
dos meus amigos, continua a ter o hábito de ter como acompanhamento do arroz e
feijão cotidiano a farinha de mandioca ou de milho. E a farinha ficou martelando
em mim, fui buscar respostas. Câmara Cascudo me deu a primeira luz:
"O nativo limita as refeições às possibilidades existentes. Não
deixa para amanhã. É o apetite dos convidados de uma casa em festa. Os povos
agrícolas, com as difíceis colheitas anuais, falam nos "meses da
fome", de produção escassa, não para diminuir o cardápio mas para
robustecerem o estômago, preparando-o para épocas de carência. A provisão, a
despensa, o depósito de víveres, o fumeiro, a cabaça, os surrões de couro, os jiraus sobrecarregados, os sacos contendo cereais, o sentido
da previsão e da defesa futura para a subsistência, são conquistas espantosas
da inteligência refletiva contra o dispêndio vocacional. Essas reservas foram,
entre os ameríndios brasilienses, farinhas, de peixe, de mandioca, raramente de
milho. Sem a farinha o indígena estava morto. A farinha de radical latino far,
é genérico de cereais, moídos, pilados, triturados. De sua importância
etnográfica revelaram vocábulos farto, fartura, repleto de abundância de
farinha. O próprio 'farnel', a provisão, a provinha de farinariu, farinária, a
bolsa de farinha. Homo nostrae farinae, poetava Pérsio, significando igualdade
de condição social pela unidade alimentar"
Primeira
resposta: a farinha nasceu da necessidade de manter o alimento mais duradouro,
de faze-lo durar e junto com outros ingredientes manter o sabor e a validade.
Em
outro livro, “ O Milho e a Mandioca”, sobre a farinha a autora Maria Thereza lemos
de Arruda Camargo, discorre:
“Desde épocas pretéritas, o milho e a
mandioca, desempenham importante papel na alimentação do brasileiro. (...)Eles
emprestam ainda, aos pratos que os levam como ingredientes básicos, seu toque de
cultura regional, visto que tanto um como outro tinham territórios bem
difinidos, ao tempo do tropeirismo, demarcados geograficamente pelas culturas
respectivas das plantas: milho e mandioca. (...) Ao tratar a dieta do tropeiro,
que tinham como base as farinhas de milho e mandioca, dando origem ao feijão
tropeiro.”
Podemos
concluir que os tropeiros foram os responsáveis pela introdução da farinha e da
farofa na alimentação do vale do paraíba.
foto: http://www.brasilcultura.com.br /culinaria-brasileira/feijao-tropeiro/ |
Mas os índios já a consumiam antes mesmo
deles e Camara Cascudo dá o arremate sobre isso: “A farinha indígena, não
tendo prensa e antes não passando por um ralador eficiente, era grumosa, raspas
de mandioca e tal qual tinham saído das mãos das cunhãs e não a massa compacta
e fina dos nossos dias” (pág, 97).
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/etnias-do-rio-negro/1534 Foto: Beto Ricardo, 1997 |
Até hoje a farinha resiste no prato.
Aos amigos
que responderam a pergunta que fiz no face: “ Você come com farinha?” Quase unanimidade!
Das 56 pessoas que responderam, somente duas não comem! Todos os outras 54
pessoas, dizem não poder faltar farinha em casa. Seja de mandioca, seja de
milho – os filhos de nordestinos preferem a de mandioca, e os que tem
descendência mineira, utilizam mais a de
milho . Alguns dizem que a pimenta e o feijão são a combinação perfeita
pra farinha ou pra farofa. Tem gente que come com macarrão. Eu também e adoro!
Claro que
essas questões estão longe de ser uma pesquisa acadêmica, mas representam mesmo
que numa amostragem nada técnica, que a
farinha continua fazendo parte da nossa alimentação. Mas se hoje não existe a necessidade
de armazenar a comida como havia na época dos tropeiros, porque a farinha ainda
resiste em nossa alimentação cotidiana? Uma pergunta sempre leva a outra!rs...
Mas como
disse num primeiro post, este não é um espaço de respostas e sim de
possibilidades, portanto a investigação continua! E pra num perder a viagem,
que tal uma farofa pra próxima refeição? Aqui em casa eu utilizo muito a de
milho. Farofa é de uma praticidade sem tamanho e sustenta que é uma beleza,
fora que além de acompanhar o arroz e feijão também pode simplesmente substitui-los e fazer um par perfeito com alguma carne ou peixe. Se misturado com
legumes, frutas e castanhas - que podem dar uma textura bem crocante, fica divino!
Mãos à obra e use a imaginação. Mais fica uma dica: assim que desligar o fogo da
farofa, experimente colocar uma colher de manteiga e misturar. Além de sabor
traz uma textura muito mais leve e airada pra farofa.
Farofa crocante cremosa da Chimbica, com arroz e brócolis e purê de mandioca assado Foto: Viviani Leite |
Outra
receita de farofa muito usada aqui na região é a farofa doce. Também feita com
farinha de milho e banana, como este da foto. Pra finalizar eu coloquei um fio
generoso de mel e umas folhinhas de manjericão. Delicia pura pro café da manhã ou da tarde!
Farofa doce de banana com mel e manjericão Foto: Viviani Leite |
Bom
apetite!