quinta-feira, 14 de maio de 2015

Você come com farinha? Sobre a farinha, as farofas, nossas histórias e algumas questões.

Eu ando imersa no universo da cozinha. Além do exercício prático cotidiano de cozinhar e fazer experimentos na cozinha como por exemplo explorar as várias texturas de polentas e angus, seus possíveis recheios e a sua combinação com queijos e molhos, também  pela  primeira vez estou tendo a possibilidade de cozinhar para mais pessoas e isso exige uma grande responsabilidade (sempre cozinhei para os mais próximos, mas agora o círculo anda aumentado e estou adorando!). Só que, além disso, ando também estudando, lendo e pesquisando sobre a comida, suas relações sociais, econômicas e culturais. O quanto somos influenciados pela comida que comemos e vice-e-versa. Sempre me interessei pela relação que a comida exerce na comunidade. O simbolismo da preparação de um determinado prato nos mostra muito das mãos que o preparam. Esse encantamento me acompanha desde criança quando acompanhava atenta ao dia da “Pamonhada” na minha família. Vendo o milho se transformar em creme, bolos, doces e bebidas enquanto as dores e encantos da minha família iam se mostrando em cada etapa da preparação. Os homens depois de colher levavam o milho e as mulheres esperando começam o preparo. Cada uma delas, uma função. E sem nenhuma ordem que não a técnica de preparo – descascar, moer, ralar, cozer – que cada uma delas dominava. Entravam causos, histórias de vida, cantos, sonhos, vontades e prazeres. Na época, claro, não tinha clareza de tudo, era uma curiosidade atenta como de um espectador diante de um espetáculo teatral. Ali eu ganhava a cumplicidade de minha mãe, avós e tias. No fim do dia, os homens depois de muito jogar truco, já haviam descansado do almoço e das pequenas doses de aguardente e as mulheres cansadas, mas agora carregadas de uma força coletiva, e  nós, as crianças fartávamos de comer o milho em suas mais variadas formas.  Enfim, desde então, de forma intuitiva fui carregando em mim a tentativa de decifrar estes códigos e símbolos em torno da mesa e do fogão.

Durante este percurso, encontrei muito material (livros, documentos, textos, sites, comunidades, etc.) e são base essencial para que eu possa entender a história da nossa alimentação e seus processos históricos, suas relações culturais. A comida da região e suas influências econômicas e culturais. Os tropeiros, o homem da roça, as mulheres, a alimentação indígena e africana, enfim, a formação de nossa base alimentar e pude (movida pela curiosidade sempre!)  tentar traduzir e interpretar isso na cozinha que cotidianamente pratico. E esta semana tive um “start”, uma indagação que já me acompanhava mas de forma muito, mas muito inconsistente e que  martelava lá no fundo sempre mas foi  durante um café da manhã em meio as minhas leituras matinais que se formulou com clareza:
O quanto ficou daquele homem e mulher da roça, do tropeiro, do índio e do negro na nossa alimentação e em nossos hábitos à mesa hoje? O que as pessoas da minha geração e mais novas, nascidos nesta região ( Vale do Paraíba Paulista)  e influenciados por esta memória gustativa mantêm cotidianamente nos dias atuais? Se somos o que comemos quem é o homem valeparaibano hoje? O que restou de suas tradições em torno da mesa e o que faz elas sobreviverem diante desta padronização alimentar e porque e elas resistem?
Lancei estas indagações no face. Fiquei surpresa que muita gente retornou e o papo ganhou força. No ímpeto, lancei perguntas e a primeira delas foi: Quem come com farinha? Quem dos meus amigos, continua a ter o hábito de ter como acompanhamento do arroz e feijão cotidiano a farinha de mandioca ou de milho. E a farinha ficou martelando em mim, fui buscar respostas. Câmara Cascudo me deu a primeira luz:

"O nativo limita as refeições às possibilidades existentes. Não deixa para amanhã. É o apetite dos convidados de uma casa em festa. Os povos agrícolas, com as difíceis colheitas anuais, falam nos "meses da fome", de produção escassa, não para diminuir o cardápio mas para robustecerem o estômago, preparando-o para épocas de carência. A provisão, a despensa, o depósito de víveres, o fumeiro, a cabaça, os surrões de couro, os jiraus sobrecarregados, os sacos contendo cereais, o sentido da previsão e da defesa futura para a subsistência, são conquistas espantosas da inteligência refletiva contra o dispêndio vocacional. Essas reservas foram, entre os ameríndios brasilienses, farinhas, de peixe, de mandioca, raramente de milho. Sem a farinha o indígena estava morto. A farinha de radical latino far, é genérico de cereais, moídos, pilados, triturados. De sua importância etnográfica revelaram vocábulos farto, fartura, repleto de abundância de farinha. O próprio 'farnel', a provisão, a provinha de farinariu, farinária, a bolsa de farinha. Homo nostrae farinae, poetava Pérsio, significando igualdade de condição social pela unidade alimentar"

Primeira resposta: a farinha nasceu da necessidade de manter o alimento mais duradouro, de faze-lo durar e junto com outros ingredientes manter o sabor e a validade.
Em outro  livro, “ O Milho e a Mandioca”,  sobre a farinha a autora Maria Thereza lemos de Arruda Camargo, discorre:

“Desde épocas pretéritas, o milho e a mandioca, desempenham importante papel na alimentação do brasileiro. (...)Eles emprestam ainda, aos pratos que os levam como ingredientes básicos, seu toque de cultura regional, visto que tanto um como outro tinham territórios bem difinidos, ao tempo do tropeirismo, demarcados geograficamente pelas culturas respectivas das plantas: milho e mandioca. (...) Ao tratar a dieta do tropeiro, que tinham como base as farinhas de milho e mandioca, dando origem ao feijão tropeiro.”

Podemos concluir que os tropeiros foram os responsáveis pela introdução da farinha e da farofa na alimentação do vale do paraíba. 
foto: http://www.brasilcultura.com.br
/culinaria-brasileira/feijao-tropeiro/

Mas os índios já a consumiam antes mesmo deles e Camara Cascudo dá o arremate sobre isso: “A farinha indígena, não tendo prensa e antes não passando por um ralador eficiente, era grumosa, raspas de mandioca e tal qual tinham saído das mãos das cunhãs e não a massa compacta e fina dos nossos dias” (pág, 97)
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/etnias-do-rio-negro/1534
Foto: Beto Ricardo, 1997














Até hoje a farinha resiste no prato.

Aos amigos que responderam a pergunta que fiz no face: “ Você come com farinha?” Quase unanimidade! Das 56 pessoas que responderam, somente duas não comem! Todos os outras 54 pessoas, dizem não poder faltar farinha em casa. Seja de mandioca, seja de milho – os filhos de nordestinos preferem a de mandioca, e os que tem descendência mineira, utilizam mais a de  milho . Alguns dizem que a pimenta e o feijão são a combinação perfeita pra farinha ou pra farofa. Tem gente que come com macarrão. Eu também e adoro!

Claro que essas questões estão longe de ser uma pesquisa acadêmica, mas representam mesmo que numa amostragem nada técnica,  que a farinha continua fazendo parte da nossa alimentação. Mas se hoje não existe a necessidade de armazenar a comida como havia na época dos tropeiros, porque a farinha ainda resiste em nossa alimentação cotidiana? Uma pergunta sempre leva a outra!rs...

Mas como disse num primeiro post, este não é um espaço de respostas e sim de possibilidades, portanto a investigação continua! E pra num perder a viagem, que tal uma farofa pra próxima refeição? Aqui em casa eu utilizo muito a de milho. Farofa é de uma praticidade sem tamanho e sustenta que é uma beleza, fora que além de acompanhar o arroz e feijão também pode simplesmente substitui-los e fazer um par perfeito com alguma carne ou peixe.  Se misturado com legumes, frutas e castanhas - que podem dar uma textura bem crocante, fica divino!
Mãos à obra e use a imaginação. Mais fica uma dica: assim que desligar o fogo da farofa, experimente colocar uma colher de manteiga e misturar. Além de sabor traz uma textura muito mais leve e airada pra farofa.

Farofa crocante cremosa da Chimbica,
com arroz e brócolis e purê de mandioca assado
Foto: Viviani Leite
Outra receita de farofa muito usada aqui na região é a farofa doce. Também feita com farinha de milho e banana, como este da foto. Pra finalizar eu coloquei um fio generoso de mel e umas folhinhas de manjericão. Delicia pura pro café da manhã ou da tarde!

Farofa doce de banana com mel
 e manjericão
Foto: Viviani Leite


Bom apetite! 

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Certo e errado na cozinha

Eu faço arroz exatamente como minha vó materna fazia quando eu era criança. A única coisa que muda é o fato de que agora eu uso azeite ao invés da gordura de porco. Minha vó, como disse no post anterior, nunca gostou muito de cozinhar e então, quando ia pra cozinha não era dada ao capricho e exatamente por isso, desenvolveu um jeito único de cozinhar. Pra mim, desde criança o melhor arroz do mundo era o que ela fazia. Grãos grandes, macios, soltinhos e além de tudo com um tempero único, pois como ela tinha certa "preguiça" de amassar o alho ou picá-los bem picadinhos, ela simplesmente o descascava e jogava na gordura quente. Inteiros! Quando eles estavam quase queimando, ai então ela jogava o arroz lavado e seco (isso ela fazia com antecedência, pois como ela própria diz: arroz molhado não pode ser refogado!) e então depois de muito refogar e mexer com a colher de pau, colocava uma pouco de sal e água quente até chegar dois dedos acima do arroz, abaixava o fogo e tampava deixando um vãozinho de mais menos um centímetro pra sair o vapor e passado mais ou menos uns 15 minutinhos estava pronto. Delicado, macio e com aqueles dentes de alho que depois de quase queimados, ficaram fervilhando na panela junto à gordura e depois cozinhando, finalizavam quase sempre aparentes, cremosos e doces! Hummm...lembrança das boas! Eu adoro o gosto do alho amassado junto do arroz, essa combinação é uma das melhores do mundo no meu universo gustativo. Então quem vem em casa e come da minha comida, vai sempre comer um pouco do arroz que minha vó fazia (atualmente ela quase não cozinha, embora seja muito ativa e cheia de vida no auge dos seus 85 anos de vida!).
Esta introdução é só pra poder chegar onde quero chegar neste post que é: Na cozinha não existe certo ou errado! Isso mesmo, me lembro de uma entrevista pra um site em que uma famosa chef de São Paulo foi questionada sobre um filé que ela servia no seu restaurante e que recebeu naquele ano um destes prêmios gastronômicos e a resposta dela simplesmente foi: "Eu faço tudo errado! Eu tempero a o bife com antecedência, é assim que minha mãe fazia e é assim que eu continuo fazendo e fica perfeito!".
Nas escolas de gastronomia, somos quase sempre ensinados sobre o jeito certo de cozinhar. Os termos e as técnicas ganham uma grandeza quase religiosa, como se fazer de outro jeito, fosse coisa do demônio. Viram verdades absolutas. Uma vez discuti com um professor porque ele me disse que massa podre não existia, existia sim a massa Patê Brisée, (elas são a mesma receita, com proporções de gordura, farinha e liquido idênticas!) mas a massa podre não existia, pois na língua francesa, a oficial da gastronomia usada nos restaurantes e na hotelaria, não se usava este termo. Eu entendo que a escola de gastronomia é feita para formar pessoas para o mercado de trabalho e por isso, os termos usados seguem uma norma internacional e que se eu disser no restaurante de um navio em que existem cozinheiros de diversos cantos do mundo, que quero uma torta com massa podre só os brasileiros vão entender, mas seu disser que a quero uma massa patê brisée todos terão a obrigação de saber  o que é e que deste modo, o termo francês é o mais correto nestas situações, nas cozinhas de restaurantes internacionais e estudantes de gastronomia e cozinheiros tem a obrigação de saber disso, mas daí a dizer que a massa podre não existe é um outro capítulo!
Fazer o curso de gastronomia mudou meu modo de cozinhar, entendi processos que antes eram intuitivos, aprendi formas novas de cocção, cortes, temperos e técnicas. Mas também reforçou algumas de minhas convicções pela qual a academia ou os cursos técnicos de gastronomia ainda patinam e uma delas é esta dicotomia entre a culinária de mercado, dos restaurantes internacionais e a valorização das técnicas e das receitas brasileiras. Picar os ingredientes com os mineiros picam ( bem picadinhos!) exige muita técnica, refogar é tão importante quanto brasear e deixar o alho inteiro quase queimando na gordura antes de fritar o arroz e por fim cozinhá-lo é tão certo quanto o arroz pilaf dos grandes restaurantes. Se a comida fica boa e saborosa, tem uma boa apresentação é feita com bons ingredientes e com carinho ela é uma receita pra lá de certa. E se for compartilhada à mesa com a família fica melhor ainda!
Uma dica: faça o arroz com dentes de alho inteiros e quase queimados como descrevi acima e depois me conta o que achou?